7 de julho de 2019

ocre velho

às vezes penso se deveria contar os fios de cabelo que saem em minhas mãos no banho – quente o suficiente para
e se deveria mesmo retirá-los do vidro ao final do banho e se
esse poema iria sobreviver a todas essas pequenas tarefas que sempre devem ser concluídas principalmente quando se está hospedado em algum outro lugar
enquanto espero que o livro que escolhi na estante conte-me uma história de amor

meu ex-namorado uma vez arrastou os fios de cabelo presos ao vidro do box para o formato de um coração e acho que talvez isso tenha sido uma história de amor
mas não sei de muita coisa e deixo que isso se torne aparente quando sem querer pronuncio afiliado ao invés de filiado e quando pesquiso se posso continuar dizendo estralar ao invés de estalar

minha mãe acha que não é inteligente e acha que sou inteligente e acha que puxei isso do meu pai e tive vontade de chorar agora

penso também se queria mesmo uma história de amor tão em pedaços quanto a que estava produzindo ainda ontem à noite, ou talvez hoje pela manhã
mas sei que não, sei que não porque eu sou a mesma que se vê do outro lado ainda com mãos em mãos e sei que poderia me causar tanta dor quanto à possibilidade dessa dor que por dois anos senti sem ver de fato
sem nunca saber de fato
nunca conheci alguém tão inteligente quanto a minha mãe

quando chegar em casa vou pintar minhas portas em ocre velho


16 de fevereiro de 2019

deságuo

pedaços dos meus corpos todos de todos os outros tempos
inalcançáveis
nem sei e uso nem ao invés de não
nem sei mais o que eu quero, e isso é tão normal
tão simples
os lobos me deixam carcaça à terra
carcaça, carrion,
pinga pelos dedos o resto, o que me lembro
quando já entorpecida me vejo escorregar do sofá ao chão
líquida
e deito ali com medo da história da vizinha
que derreteu seu rosto na baba escorrida pelo canto da boca
e por sete dias ficaram ali, os bichos, os vermes, me derretendo a pele
que nem minha é e nem minha foi sequer

me visto de todas as roupas e me vendo barato
roupas brinde
eu nem me mexo mais, deixo escorrer pelas pontas dos dedos
o caminho que fez a lama, antes, pescoço, braços, dedos
agora nascente já por baixo das unhas
deságuo lenta

deságuo
um adeus em todas as janelas


15 de janeiro de 2019

de olhos abertos durante a siesta

todos os olhos
eu somo perspectivas
e as esqueço rapidamente
e espero alguma palavra fazer efeito
nada do que digo sustenta
tenho medo de morrer assassinada durante a sesta
uma semana sem poder fugir eu espero planejando
durante a sesta que não durmo e só espero à porta
enquanto dormem por dentro de espaços que não conheço
eu ando só e com frio esperando acordar esperando não
precisar voltar e meus planos estão cada vez mais aqui
e eu cada vez mais distante sempre nos cômodos ao lado
adjacentes eu espero com a porta encostada e nada me
instiga a
enquanto sempre a mesma técnica
eu vou ficando só aos poucos
esperando só aos poucos
esqueço de digitar
está quase no fim, o filme, eu acho
parece estar no fim, mas como se alonga o tempo e a espera
de um próximo diálogo

21 de junho de 2018

apêndice

uma face que é suficiente durante esses poucos segundos depois que desperto
do banho eterno de água e ar
e preenchem minha barriga e removem
uma arte só que existe apenas no sofrimento da noite de uma dor sem posições
muita água
as fotos que tirei e a cumplicidade de mãos e lugares e uma segurança que existe só na face que não existe enquanto durmo
uma face de um só rosto
enquanto a segunda dorme
desenho por cima de fotos e ainda que a corrente da água de antes me sugue
e vejo passar muita água como capítulos e páginas de um álbum e água água
sinto o desespero de quem vem para me puxar de volta
e puxa e nunca senti nem medo de me afogar
minha câmera à mão
é muito triste que uma só face exista mesmo existindo mil faces que nos adoecem
é muito triste a dor quando sozinha e o medo
é muito triste as lágrimas que choro escondida logo na possível despedida de mim mesma
como me despedir da única perspectiva possível
certa coisas não consigo entender e me incomodam até que
abandono e me deixo tomar de dor que irradia e desfaz sentidos e origens
de onde vem a dor
de onde vem a despedida
de onde vem a voz
ao redor de mim que me fala coisas que não quero ouvir
para onde foram as lágrimas da minha despedida
e para onde foi aquela de quem me despedi no chuveiro do hospital
e na face de agora há pouco permanecíamos como a face que despedimos
tantas despedidas





1 de maio de 2018

fio a.

todas suas regras e suas paredes e suas pessoas
acho que não espero tanto
quanto os olhos que esperam
de alma e alma
alma sem origens, vinda manifesto fixa
não tão fixos
e olha e sinto a angústia do observar
mas observo e sinto apenas
a espera
uma espera pela decisão quando a minha não suficiente
não sei o que escolher olho o ascendente
e espero repousando olhos sem ver
e derrama todos juízos
comandos comandos
juízos
ah não acredito
the way that i want to

love love lovvv
um determinar de coisas que não dizem mais respeito a mim
ainda que eu mova os olhos que não movem
e fixam
i don’t know what i’m doing here
um retrato de anos de psicanálise e a fumaça enegrecendo
não apenas pulmões
prestações de serviço e pessoas se sentindo inúteis, deixe que eu seja também seu veneno e seu vômito, não é sobre isso
não é esta a estrutura
um medo e um observar que me esgotam
histórias que esgotam e devem esgotar
não só a mim, digo fumando já o filtro
nem a tosse ou dor ou os olhos suspensos
mantém
um nome alma um nome outro qualquer nome
e
nobody steps on sand nobody steps clearly
on sand

7 de fevereiro de 2018

nem nada

sem nenhuma referência
nenhum texto grifado há tanto tempo
me constituo de pedaços dos outros que acho pelo chão
os restos os risos que não rio porque não tenho folêgo
e nem tentando
o que era agora me responde com mais frequência do que quando ansiava
sempre por qualquer coisa
e vejo passar entre os fragmentos de conversa meu antigo nome
meu antigo nome e memórias que deveria ter escrito e agora não me recordo
não poderia descrever mais se a mão direita ou esquerda que segurava o ombro
e a repulsa
não me lembro
todos os dias procurando por todos os lugares em que eu poderia estar
nunca estando, só os rastros dos dedos nas teclas do piano mas já não me lembro mais
e agora não procuro mais, deito e finjo dormir até dormir e dormir e dormir e acordar
e espero que me digam, e quando dizem qualquer coisa as vezes parece ser suficiente e dura algum tempo, mas nem isso mais, passo reto e não reconheço chamarem meu nome
e não me remeto mais a mim ou a quem fui, andando pelo gramado, cabeça de lado
não me afirmo como antes, à beira do precipício, em queda, me firmando nos escombros quando ainda não escombros, mas a necessidade do desmoronar
me desfiz tantas vezes fazendo-me o nada que sabia ser
mas agora não sei mais, não sei mais, não sei mas lê-se na voz bamba de quem tenta em meio ao desespero
mas continuo com medo, se ao menos esquecesse também isso
agora não sou enquanto sinto medo, e preferia só não ser ou ser nada com medo
a decadência interna a mim, arestas de algum polígono que não importa
margens de um rio seco



21 de abril de 2017

valsa

as cinzas ainda vermelhas
do primeiro cigarro da noite
cinzas brasa
convido sempre alguém para entrar
convido de dentro
portas fechadas
e é linda a vista mas não me lembro
de quando o que apenas vi
foram dedos em dedos
e corpos valsando
e a despedida que não escutam
a água a mesma
a luz a mesma
todas
e toda vez eu chamo sem enviar
as cartas
sei onde buscar abrigo
mas espero na chuva no frio
espero me acostumar
cada vez mais magra
meus ossos os observo no espelho
ou alinhados à mesa
os cortes os observo nos braços
dos outros a queda
cicatrizes de mãos que se seguram
forte demais
eu existo eu acho
mas não meus dedos apoiados
sozinhos sobre dedos
e o hálito através da neblina
que causamos por dentro
eu espero que os mesmos braços
me guiem e não guiam
e não ouço os mesmos sons em casa
sem o direito da despedida
fico só fechando portas
e virando chaves
enquanto a brasa apaga e as sobras se fazem
cinzas na madeira
vozes que não me dizem nada
ainda a mesma coisa por quanto tempo
sinto medo e morro cada vez mais magra
como se
ossos ao chão
sem uivos sem sons

9 de março de 2017

Intervalos

I.

em dias em rostos cinzelados
em madeira, espero
sem sentir o vento que risca meu rosto
um dia, querendo morrer, espero chorar
sem sentir o vento que risca meu rosto
um momento que me fez não ser quando
nos juntamos para não existir
já não me lembro e não há, há, documentos
que provem, tudo se deteriora, tudo?
eu, às loucas, espero que sim
e que sobre apenas ruínas e nossos pedaços voando por todos os lados
podendo dizer, digo, e me nego depois
que a mesma voz, o significado
direcionado a mim
nos juntamos para não existir

não me lembro mais que posso morrer
para não acordá-lo em desespero
não dizer não percebe que morro
não percebe que o filme será tido em meio?
a celulose queima em círculos e aguardo fechar-me os olhos
não conte a meus pais, não conte,
quando tiver morrido, que eu o amava
qual lágrima desceria o rosto dos que soubessem
que não sinto nada
minha primeira lágrima ainda espera o retorno
e ouço a voz que imita a minha, que imito,
sólida,
sólida, a ária preenche os espaços vazios dentro de mim,
entre ossos, o espaço que hesita o encontro,
afundo pedra maciça, e em meio aos ossos de dEUs
dormirei
talvez um dia
eu mãos dadas e ele no inferno

espero o testemunho que me afirme a dança de corpos a sós


II.

lobos carregam meus ossos a ele e os alinham no chão a sua frente
uivos me dizem a dor que não sinto, não sei,
lobos me levam a lugares, antes, onde ele não está
mas sei onde está,
sei todos os espaços, quase todos, os espaços, que ocupa
espero os lobos me levarem a ele


III.

nenhuma marca por entre pele, entre peles
espaços que se preenchem de dEUs
e dEUs não existe há um tempo enquanto não o vejo
não à transgressão da respiração que chega ao meu rosto
arranque cada um dos dedos, um por mim, minha mão direita
anéis dedos sem fim , sem bordas, sombras constituídas
de uma mesma escuridão, sombra
me alimento de um dia e não me ouço
você tem flor de maio em casa?
eu sinto seu receio em mim, dentro de mim corre a dúvida
e me consome


IV.

nossos ossos todos no escuro
respiramos apenas no escuro
eu você e o espaço entre nós


V.

ópera só interlúdio


VI.

sou todos os peixes
e antes os que se asfixiam na margem
margem seca que não toca a água
sou antes eles
observando meu último cenário
num último fôlego
metade terra, metade o céu e está tudo muito escuro
está tudo muito escuro enquanto sinto um último toque
ou primeiro toque,
uma experiência que é sempre a primeira e a final
não há nada além do toque
não há nada além de um pensamento em comum
as nuvens de fumaça começaram em uma
sem uma noite de incêndio


12 de fevereiro de 2017

por baixo da terra, a noite

eu não sei dizer a despedida
se só sinto a falta
mãos que não passam pela minha perna
pelos fios do meu cabelo
eu só sei a falta
e os fios, fios, eu sei a minha mão que passa
e divide e sente o calor e não sente mais
em pequenas mordidas eu fico só
e não sei por onde passa mais a morte
ou por onde passa , não mais atrás de mim
não me viro e se me viro não encontro nada
eu só sei a falta
depois de fugir tanto, de correr tanto, não ouço gritarem mais meu nome
eu paro e respiro enxergando minhas mãos ao volante
depois de me sentir embriagado embriagada
eu ouço o silêncio que habita a casa
no carro em casa
e só sei isso
eu não sei explicar a terra por baixo das unhas
as cinzas por baixo da terra
por baixo das unhas
o corpo que dorme só
sei ser só
e só sei a falta
minha voz às vezes meu corpo às vezes meus olhos às vezes
por outros, mas permaneço
e sinto medo [frio] hoje completamente
completamente só
eu observo sem nunca hesitar a despedida
e observo apenas

minha voz não chega do outro lado
esta noite, me arruinaram


la notte 1961

13 de janeiro de 2017

ninguém , poema lixo lixo

eu preciso ficar ainda um tempo do lado de trás da tela
vendo por entre pedaços da foto que que foto que foto eu fiz sempre tudo errado
o som e a voz que droga o som e a voz
eu fico sera será que eu fico também do lado pela tela
ouvindo lendo lendo
eu não sei o que fazer
eu consegui fazer dois meses parecerem um ano e um ano se passou
e eu queria alguma coisa e nada passou
eu sinto ainda a mesma coisa lâmina à pele
e meus olhos continuam os mesmos que observavam antes emergir
a cor e a água em ondas , ondas eu sinto todo meu corpo preenchido
envolvido , você sequer saber o gosto de sal da água
e afunda sem abrir os olhos eu abro olhos eu to com muito medo
eu não sei não vejo areia
eu não sei se   eu não quero que   ser só a mesma cena que vi na tela
eu não tenho mais maquiagem para remover eu não tenho
eu não me sinto bem eu não sei qual parte dói
não adianta ir pra lugar nenhum se ainda quantas vezes
não sei, como se estivesse embriagada eu me mexo e escrevo
errando letras e esquecendo partes escuras de noite de noite
tudo só amortece e ainda sinto depois de dois meses
um ano a faca que me abre de dentro procurando espaço para respirar
eu um ano a faca
eu não entendo ou me importo com a forma de nada e nada se encaixa dentro de nenhuma medida que minha voz não destrua fora de
fora
fá fora de tom
quantas vezes eu acho que entendi uma última vez que espero
e não adianta ir para lugar algum
uma última vez eu vou existir em pânico a noite sem saber
eu não suporto o pânico eu nunca quis muita coisa
eu nunca perguntei muita coisa e eu não tenho nenhuma dúvida
só não sei e não me lembro de nada que faça sentido
nós não subimos eu não existo fora eu não existo
eu não existo meu rosto numa fotografia não me conhece e não me diz
o sorriso eu choro enquanto a morte vem em pequenas mordidas
tentando me acordar, me levantar, me levar para o banho
tentando me dizer o que escrever, limpar manchas de vinho dos cantos da boca
eu quase nunca choro não choro mas em um ano ou dois meses
eu sei fazer as poucas contas que preciso eu não quero ter que ver ir embora
quero ver ir embora quero todo dia numa perspectiva circular
habitar apenas o momento que vejo vários corpos todo dia o mesmo
cada um indo em outras direções eu não sei existir senão um corpo parado
que vê cansado de dizer de dizer de dizer de dizer
a ária de uma voz que não existe
a ária minha voz desafinada
mlq que porra é essa
eu não sei fazer mais nada eu não sei separar mais as palavras QUANTAS VEZES QUANTAS VEZES QUANTAS VEZES    nunca soube fazer nada que merda mais pedante tudo
tudo nada amortece vejo morrer aos poucos uma barata asfixiada sem morrer sem morrer
morre várias vezes a cada espasmo eu sinto cada espasmo e vejo por todos os lados
tudo nada amortece eu gostaria de existir entretanto entretanto entretanto
eu sinto cada novo fio de cada nova lâmina
quase como arrancar cada dente
eu sinto tudo , todo espasmo , todas as gotas que chegam na hora certa
eu sou um humano que procurar um lugar pra entrar eu não existo
não devem ser os meus dentes não devo existir não tenho como sorrir do outro lado
eu posso morrer btf

16 de dezembro de 2016

quarto 506 - quarto 187

sete vezes
tento enxergar o outro lado de fora da janela
como se ainda houvesse alguma coisa fora afora
e sem conseguir sete vezes o mesmo osso bate no vidro
o mesmo osso setes vezes depois a parede falsa
se apoia todo dia, uma outra vez para determinar a cor
da pele por baixo sangue, emerge a cor que evito
antes da última vez o mesmo osso à parede
antes o vidro, mas não posso enxergar no outro lado
aqui está embaçado e tento me lembrar os nomes
riscados no muro, na esquina, estou em outra cidade
procurando as coisas que deixei cair outro dia

sete vezes se foram eu me vejo partir, malas à mão
qualquer lugar, quero ir para qualquer lugar
eu sei o espaço do desconhecido e ando com mãos livres
                                                                        malas à mão
pela cidade que não conheço virando esquinas
que não deveria
queria ser parte do que desmorona e me deixa porta
fora
eu não tenho nada - ao redor posses livros discos
não tenho nada e ando nua pelas ruas das cidades que não conheço
acordo abrindo os olhos para janelas coladas no cinza
e cinzas mancham meu vestido azul meu vestido preto
ando nua sinto frio
como entra o ar por entre prédios como entra o ar por entre dentes cerrados
sinto raiva e sinto frio e me sinto só

cáries assumem espaços entre meus dentes
não assumo espaços em parte alguma
não moro dentro do meu quarto ou dentro de qualquer coisa
e não conheço as ruas dessa ou daquela cidade ou
de qualquer outra – e limpo as cinzas e os restos
de relva que trouxe no sapato
sempre sinto fome agora sempre
sempre sinto fome desde então quando decidi que seria algo a mais
que faria parte de algo que desmorona

os meninos passam pela rua e observo seus rostos limpos
meus vícios não me constroem mais
não vejo um que respire por tempo o suficiente
ou que diga algo antes da minha própria voz
planaltina belo horizonte são paulo
brasília
meus vícios não me conhecem mais
canto a ária

20 de novembro de 2016

olga

tropeço nas pernas dos corpos que esqueço pelo chão
tropeço e me deito por cima do cadáver um deles
o que me foi mais difícil encarar enquanto em desespero
me pedia desculpas, parecia sincero, parecia,
enquanto dançávamos a sós em cima e por baixo de cadeiras
me sinto só quando corro para longe, por cima de bancos,
e respiro a brisa úmida que excede a chuva
observo de onde sempre estou, sempre debaixo da árvore
sempre de longe e não vejo, mas entendo todos os corpos
que querem sempre existir, sempre existir ao redor de  
e ao redor do som que não seu, e se movimentam
alguns segundos, segundos, atrás, me dá uma gole da sua bebida
como se pelo gole nos tornássemos um só, um movimento só
um de nós, o aceitamos, um de nós, mas você não existe
o que há dentro dessa garrafa que te faz ser assim,
que os envolve num momento que não existe e é esquecido
a cada novo passo, ir embora sem medir a distância ou
a capacidade dos pés, deixando pedaços do vidro para trás,
pedaços da garrafa arremessada pela janela, quem é
o que é essa mão e essa força o que quer dizer
quando fico imóvel e não sinto medo, não queria me machucar
fico descalça recebendo visitas que nunca chegam
espero à porta a resposta, mas sem esperar nada -
eu deixo que me deixem só e deixo que abandonem
mas me mudo, aos poucos, levando aos poucos minhas peças de roupa
levando minhas folhas, meu colar de pedras, não sei quais pedras
e em algum momento, não vou ouvir a porta, não vou ouvir do lado de fora
a mão, mesma mão, a mesma mão – esquerda, mesma mão, não vou ouvir
estarei nua, no colchão, no chão, vestindo meu colar de pedras,
ouvindo um último disco, morrendo uma quarta vez essa noite,
em outra cidade, em outro quarto, em outro corpo, outro cadáver que repousa
por baixo de mim. todos são apenas cadáveres,
a não ser a força desnecessária que não entendo
e cada vez mais longo o verso, cada vez mais incômoda a distância,
eu deixo que me deixem só, mas mesmo não sentindo nada, sente,
ao dizer não sinto nada não sinto nada não sinto nada mas existo sem sentir nada
eu sou o corpo que espera, EU, EU sou o corpo que espera
EU sou a carne que senta no asfalto e espera cética
mas deixo que me deixem só

ouço a frase que não ouvi a primeira vez, ouço todas as vezes tentando acreditar

7 de novembro de 2016

Só eu

                                                                             "Só eu não durmo
                                                                              Pra te pensar"
                                                                                                (Hilda Hilst)

Há do outro lado do vidro pessoas que 
Fascinam em medo sentindo como se
traço do gume à pele e
Observam, seus olhos todos vários abertos
Mas só eu sinto o traço (e não durmo)
acho que sinto ou só vejo escorrer o sangue
E eu continuo acordada apesar de
E faria sentido se
Apesar se                                             e o mel
A morte vem em pequenas mordidas
E não sinto dor a princípio, mas até quando
Vou poder olhá-la como se de cima e rir
Das tentativas, ao passo o corpo encolhido no colchão
Eu não durmo no canto do quarto vazio do quarto de hotel
Vazio eu não durmo e não acordo com os olhos estranhos (em mim)
Não sorrio, essa não sou eu, ou o outro que observa, ou os dois
Deixo de dormir essa noite e carrego os medos dos outros
Eu não sinto nenhum medo a não ser o de perder os dedos
Ou de precisar explicar as marcas no meu braço direito
Eu não sei sinceramente o que significam as linhas e estrias
Deixo de dormir essa noite e guio minha não existência à nostalgia
Eu digo que não existo e o pensamento é ainda anterior a isso
Eu digo, mas antes já passei por todas contradições e as evitei
De forma tão negligente, como evito sentir as pequenas mordidas,
É tão carregada a voz, há tanto que não se ouve, mas ainda assim
Pronuncio duas vezes e não sei, não sei como ainda digo ou
Se ainda ouvem ou apenas sons misturados por trás de mim
Deixo de dormir essa noite, desde então, entre decisões banais
Se envio ou apenas escrevo profecias à parede e observo de longe
No escuro, sem ver realmente, a memória escrever ainda mil vezes
Não tem mais , fim , de onde estamos , para , eu procuro outros jeitos de .
As pequenas mordidas parecem mais claras à noite
E ainda assim só eu
Não me importo de ver ir embora ainda que sete vezes como na infância
Me diziam seu avô morreu, seu tio morreu, sua avó morreu,
O irmão morreu, seu pai morreu, dona Ilda morreu
, e escuto isso
Entre sessões de brinquedos que não fazem mais sentido
Não escuto mais nada, as mordidas mais doloridas à noite
Seus dois filhos sexta entram de férias
E se beijam, os brinquedos, ainda que arremessados para debaixo da
Há algo de errado
Não onde estão olhando
cama, e ninguém os viu





6 de novembro de 2016

desvio

a diferença é continuar andando
até quando
e minhas roupas são as mesmas se vistas
de tão longe e diferente                                        s
me confundo em meio a tantas pessoas
e não conhecendo, não existo
sempre e ainda escolheria imergir
sem ver onde exatamente,
deixo que me vejam como se não estivesse ali
e não vejo um que saia contando cicatrizes
ou que diga admire-me de onde estamos
eu                                                                                     l
não vejo um que exista por tempo suficiente
deveria não, como se o oposto do movimento,
não ficando parada, deveria lhe des
tocar e tirar cada impressão não posta
cada parte do corpo apoiada e não fecho os olhos
cada parte apoiada no poste no escuro
eu não faço parte
nada poderia acordar agora e que dependa
acordar                                               quem
os braços que me esbarram, não sinto nada
onde todas as partes são apenas partes
enquanto procuro outras bordas e um outro jeito                
de conseguir entrar
mas eu não faço parte
todas as peças
estão pela metade e não se desmonta
o que já incompleto                                                               
mas tento entender o que quer dizer                                    e
o movimento cada vez mais pungente
como se pudesse entrar intensamente
uma a uma, cada faca, ou cada dedo
espero o toque que não rude                                     n
que não deixe marcas
a não ser fresta entre pano e pele                              d
eu ainda observo o mel que escorre pela borda do vidro
e vejo, do outro lado do vidro, se perder                                er
q u e l q'un
até quando
o difícil será o que quero fazer
e a voz que não soa doce

aquarela 2016

30 de outubro de 2016

rut

com duas facas pergunto
qual a vontade que suga antes
e prefiro não me asfixiar prefiro
agora prefiro não
eu existo e morro de tédio ainda um dia
ao olhar os cantos dos quartos que entro
e eu prefiro, havendo assassinado todo o resto,
voltar ao tédio e levantar e deitar cinco vezes
em um dia
acho que devo partir
e respirar do outro lado do quarto
do outro lado do carro
e se eu finalmente partir o que mais o que há ainda
do lado de fora dessa mesma coisa
prefiro não cuidar de nada
e se precisam de mim , não precisam, não existo mais
eu existo à parte
eu sou o que importa e eu vou embora
eu existo em parte, eu acho que existo em parte
mas olho as coisas numa constante despedida
e me despeço de longe, sem saber quais eram as cores
da camisa
não existindo
não deixo marcas
ou nomes
e se lembram de algo que tropeçava na chuva
ou um ritmo um ritmo mas não se lembram
ecoa na pele e nos movimentos um ainda anterior
sem nunca ter havido
marcas ou nomes
eu não existo não existo existo
não
não
sei se vou voltar

35 mm

28 de julho de 2016

Interlúdio

O sangue que escorre do altar ao chão
E sai lento de dentro do corpo do sacrifício
Escorre por pouco tempo, por pouco menos que 5 meses, espero
E os deuses observam por algum tempo logo antes
De se voltarem a outras coisas
E o templo esvazia, enquanto as bordas mais espessas
Preenchem o marfim do altar
E as bordas menos espessas vão secando à espera
Je t’attends
Quatro patas, algum desejo, e um uivo que ecoa
Pela pele dos fracos, dos que choram, dos mesmos
Que evitam, e o riso que habita o espaço entre bocas
E o sangue do selvagem espera
Novamente o ardor de dedos
O verso é inevitável, mas o sacrifício aguarda
E a espera é real, apesar de não termos tanta certeza
A cada vez que dormimos e acordamos


20 de julho de 2016

Rastros

Será se
Só me restando pedaços de pele
Para arrancar – que se desprendem em parte
Pelas bordas de alguns machucados –
Será se assim
Finalmente enlouqueço          ?

Vejo dedos que se desprendem de dedos
E se arrastam por entre divisas
E me deixam rastros a seguir
mas vejo muita coisa, vi muito que
Não existe, será se só me resta
A dor de quando esqueço
E me lembro ao deitar em cima de
uma mesma queda                  ?

Não ao vermelho branco de uma boca nua
Será se assim, seca,
Vendo por entre a cicatriz
Um outro sangue outro
Um outro amigo outro
Se cobrir de nova pele
O que deve continuar aberto

Enlouqueço se só cessar a dor
Sem uma outra dúvida
Ou um sinal como o corte a queda à pele
Que me diga o testemunho
Nem que eu continue a cavar faca à mão
Ainda o mesmo machucado

Vejo vestígios se curarem não sem antes
O rastro de uma pele que não se renova
Por inteiro





16 de julho de 2016

ária

o desfragmento dos que nunca tão perto
fere a carne arde a pele
e a possibilidade dos átomos
que se desocupam e
se reorganizam num outro padrão
desfaz-se em algumas frases e meia
uma mistura que faz fechar os olhos
o quase adormece

a mão magra demais, me vejo
nos espaços vazios entre ossos e
cores anêmicas enquanto todo nosso sangue
transborda de dentro dos frascos
e derrama do outro lado das sombras
que a sós se transpassam e se convencem em ser um só

toco a mão

a única vez em que não se queimam os olhos
olho em direção a dEUs, ainda com dedos
se desfazendo
o movimento do desfragmento
enquanto o sangue seca
poucas veias – exangue –
juntando pedaços de corpos que não deveriam
se despedir

morre a virgem Francesca que vai triste aos céus
levada pela revoada de manuscritos
dédiés à celui qui a peur
com as mãos estendidas à espera do som
morre de velha, seus dois filhos
com olhos que observam frios
sua própria morte – sexta entram de férias

estilhaços de um disparo anterior
ainda anêmicos, dEUs a espera no inferno
ainda em silêncio


10 de julho de 2016

no plastic toy

o silêncio de um corpo que anda só
e não tocado, não à mão que puxa o braço
esse silêncio
EU volto a ele e é a coisa mais difícil sim, é
e EU faço isso toda vez, e não tem mais ninguém
outro dado, ou outra vez, a não ser toda vez que EU ando
EU olho o silêncio do que admite o fim da luz
EU ouço o que não diz a letra e ouço as outras vezes e todas
as músicas que escutamos vão arrancando
a racionalidade de qualquer movimento que tento
EU sei o vazio de um corpo que tenta ser só
EU sei o vazio de um corpo que nega EU
      sei o vazio de estar na presença de dEUs
EU sei o vazio de um corpo que sempre sempre
sempre sempre nunca
que nunca experienciou senão a dor de um passado
que se mistura entre notas e rastros
cinzas, odores,
e nunca sentiu o toque senão o embriagado
e ainda assim ME expulsa, num impulso de evitar
na rotina de evitar, no silêncio de evitar
EU espero todo dia a quebra, EU quebrada no meio
duas partes, uma em cada quarto,
iminarut
só tente, EU tento todo dia,
é a coisa mais difícil de fazer
WOULD HE LIKE IT IF I TOLD HIM
EU também evito




6 de julho de 2016

Descida

Se só epígrafe e,
antes do que precede,
nada de muito terrível
Como se só a voz que chama e responde o pouco
com uma frase e meia
e lendo o pouco que
não diz os poetas     ?
As vezes penso que somos poetas
assim como somos
como tal
especiais
Dizem que não é nada
Enquanto seus olhos queimam
E seu estômago queima
Depois de algumas taças
de vinho que não contêm nada
senão o vazio de um gole anterior
Ainda topo tudo e espero o amargo que
segue a dança de corpos a sós
Mas se somos
não somos senão a sós
e nossa dança não representa muito além
do último fôlego de animais em extinção
Não ando, apenas a calma que vaga máscara
Levo comigo suas personas, suas peças de roupa
Carrego papéis presos em crimes
Injeto metais tortos de um clipe
Quando leio silêncios
e ouço e lembro os versos que falharam
leio quase tudo
Absoluto
Rasura
Meu corpo como papéis amassados
E desamassados e
Colocados cuidadosamente
Por cima de qualquer coisa que instável
Como seu corpo de água mais fraterno;
a água que escorre pelo pescoço;
a terra que seca;
a resposta que não ouvi.
Muitas falhas técnicas constroem as
Partituras e palavras
e tudo é quase não dito
Quase digo
a voz por trás da cortina e por trás do travesseiro
Com medo de olhar o outro que
vai comigo ao inferno
[mas vou sozinha ao inferno e vou andando devagar, não luto muito mais e a idade é certa, é essa mesmo vinte e dois e não por muito tempo, e vou sozinha, sem nunca ter morrido, ao inferno e lá vou observar outros libertinos que voam quase felizes de um lado a outro enquanto voo eu de um lado a outro, vomitando, eu vou sozinha, eu outros viciados]
Será que lá vamos ouvir
no vento constante
as coisas que não ditas
mas que também não são
senão silêncio?
Vamos poder tocar o outro sem desmanchar;
sem sentir a borda que arde mais que
todas as queimaduras;
a borda que uma só
logo antes do recuo
do que recua de olhos fechados
[porque melhor cair, me diz onde é seu precipício]
E ainda só o enjoo
[sem bordas os dois corpos puros ainda, vivos ainda, despidos: liquefação]
O amargo
A angústia
O sono que me leva para casa
A mão do cuidado finge conforto
O enjoo
O amargo
Ele ri e sei que sente medo
é o pensamento que antes dele antes dele antes dele antes
Agora me tranca
Sabe o corpo que recusa
Que protejo, que projeto, que sou
Eu o deixo abrir faca à pele
[num movimento suicida, uma só não pele à faca]
Topo tudo
afeto sempre e vou desmanchando
A cada tiro
A cada partida
e a cada toque que quase não senão recuo

Lara Nogueira - Francesca, 2016 - 35mm